Em meados dos anos 1960, uma frase rabiscada na parede da estação de metro de Islington, em Londres, cravou: “Clapton é deus”. O cantor e guitarrista britânico acreditou e a alcunha ainda o acompanha, superado no panteão apenas por Jimi Hendrix (1942-1970), mérito reconhecido pelo próprio, e nada modesto, Clapton. Como toda divindade, a vida do deus da guitarra é repleta de lances celestiais e também de contradições.
Neste sábado, 28, aos 79 anos, Eric Clapton, mostrou esses dois lados em uma apresentação intimista, no Vibra, em São Paulo, para um público de 5.400 pessoas, repleto de solos monumentais, pouca interação com o público, hits para ouvir rezando e manifestações políticas de apoio a Palestina. Neste domingo, 29, ele encerra seu giro nacional com um show no Allianz Parque, após apresentações em Curitiba e no Rio de Janeiro.
O pouco que falou com o público foi compensado por seus solos. Enquanto sua guitarra chorava, Clapton também se manifestou politicamente tocando com um instrumento pintado com a bandeira da Palestina na última música Before You Accuse Me. Há apenas três anos, no entanto, nos tempos de Covid-19, Clapton havia abraçado teses furadas da extrema-direita, ao criticar o distanciamento social e duvidar da eficácia da vacina (apesar de ter se vacinado). Na plateia, ninguém pareceu dar bola para suas contradições, afinal, deus é infalível, não?
Sem tempo para gracinhas, Clapton abriu o show com um de seus maiores clássicos, Sunshine of Your Love, música de 1967, do Cream. Na sequência emendou uma sequência de hits blueseiros, como Key To The Higway e Badge, parceria com um de seus grandes amigos, George Harrison (1943-2001). E por falar em Harrison, Clapton, como tem feito regularmente, deixou de fora outro grande hit, Layla, composta em homenagem a Pattie Boyd, ex-esposa de Harrison, que deixou o ex-beatle para ficar com Clapton (e para quem o ex-beatle escreveu Something).
Com um set dividido entre canções acompanhadas da banda e acústicas, Clapton emocionou o público ao apresentar no violão Change The World e Tears In Heaven, seu grande hit pop, ambas acompanhadas do violonista brasileiro Daniel Santiago. A triste letra da música versa sobre a morte de seu filho, Conor, de 4 anos, em 1991, ao cair da janela do 53 andar de um prédio em Nova York. Santiago, que já tocou no festival de blues Crossroads, organizado por Clapton. Seu mais recente álbum Daniel Santiago Plays… Clapton chegou às plataformas de streaming há menos de um mês.
Após o set acústico, Clapton volta as guitarras elétricas para finalizar a apresentação com as bluseiras Got to Get Better in a Little While, Old Love, Crossroads e Little Queen Of Spades, além de outro clássico, Cocaine. O músico havia prometido nunca mais tocar Cocaine ao vivo. Em sua autobiografia, ele contou que o vício em drogas quase arruinou sua vida e se antes ele via essa música como uma ode a droga, agora, ele passou a enxergá-la como um libelo anti-drogas.
Em sua quarta passagem pelo Brasil (1990, 2001 e 2011), Clapton fez um show emotivo e emocionante. E repetirá a dose neste sábado, 28, para uma plateia muito maior no Allianz Parque.
Gary Clark Jr.
O show foi aberto pelo guitarrista texano Gary Clark Jr. O talentoso músico de 40 anos acompanha Clapton há mais de uma década. Na última visita de Clapton ao Brasil, em 2013, na turnê de Crossroads, Clark Jr. também fez o show de abertura. A destreza com o instrumento faz com que ele seja constantemente comparado a Jimi Hendrix. De fato, Clark Jr. é espetacular ao fazer uma criativa fusão de rock, soul e blues com hip-hop. Eis, aí, mais um músico que já tem garantido seu lugar no panteão dos guitarristas.
Confira o setlist do show de Eric Clapton no Vibra, em São Paulo
Sunshine of Your Love
Key to the Highway
Hoochie Coochie Man
Badge
Kind Hearted Woman Blues
Running on Faith
Change the World
Nobody Knows You When You’re Down and Out
Lonely Stranger (com Daniel Santiago)
Believe in Life (com Daniel Santiago)
Tears in Heaven (com Daniel Santiago)
Got to Get Better in a Little While
Old Love
Crossroads
Little Queen of Spades
Cocaine
Before You Accuse Me (com Gary Clark Jr. e Daniel Santiago)